Ação judicial liderada pela Alemoa Empreendimentos Ltda busca reduzir a proteção ambiental na Praia do Engenho e Barra do Una. Ambientalistas temem que, caso aprovada, decisão enfraqueça a política pública de Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) e traga insegurança jurídica para outras cidades litorâneas no país.
Fonte: Modefica
Matéria publicada em 4 de agosto de 2022
Uma disputa entre cinco empresas do mesmo grupo econômico, liderado pela Alemoa Empreendimentos, e a sociedade civil de São Sebastião, Litoral Norte de São Paulo, tem ameaçado o processo participativo que delimitou o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) da região. Apesar da ação ter foco na mudança de Zona 2 para Zona 4 das praias no sul da cidade, caso aprovada, irá suspender lei que abrange as quatro cidades do Litoral Norte. São Sebastião possui um histórico que se repete no litoral brasileiro: desenvolvimento desordenado, falta de saneamento básico, pressão imobiliária, supressão da Mata Atlântica e conflitos de terra com comunidades tradicionais.
O território municipal de São Sebastião abrange cerca de 100 km de costa, contendo em 70% de sua área o Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo São Sebastião. O território abriga espécies de animais e plantas ameaçadas de extinção, como a jaguatirica, o cachorro-do-mato e a palmeira-juçara, além de ter um relevante grau de proteção ao meio ambiente, por ter vegetação da Mata Atlântica em estágio médio e avançado de regeneração.
No período colonial, a economia de subsistência se baseava em produtos caiçaras. Na década de 50, foi construído o porto de cargas e, na década de 60, a maior unidade operacional da Transpetro. A partir deste momento, houve grande alteração econômica e urbana na cidade, gerando fluxo migratório de trabalhadores do norte de Minas Gerais para a construção do terminal e rede de transportes, energia e serviço. A especulação imobiliária tornou-se mais forte na década de 80, com o asfaltamento da estrada Rio-Santos. Para que as praias fossem ocupadas por empreendimentos imobiliários, as comunidades caiçaras foram desalojadas – nem sempre de forma pacífica como apontam alguns estudos – para locais mais próximos ao pé da serra.
Segundo o Plano Estratégico de Monitoramento e Avaliação do Lixo no Mar do Estado de São Paulo (PEMALM), o resultado imediato desta ação antrópica “se traduz em modificação da paisagem, descaracterização de comunidades tradicionais, alterações no perfil de ocupação do solo, supressão da vegetação nativa, assoreamento de córregos e rios, poluição das águas dos rios e costeiras e alteração e descaracterização dos ecossistemas costeiros”. Quanto ao saneamento básico, o estudo avalia que é “grande a carência por sistemas de coleta e tratamento adequados, tornando a maioria dos corpos d’água receptores em veículos de transporte de despejos in natura, e que podem, em determinadas circunstâncias, comprometer a balneabilidade das praias”.
Até 1997, não havia nenhuma atuação do município no Parque Estadual, até que, neste ano, foi criado o núcleo São Sebastião do Parque Estadual da Serra do Mar. Essa foi uma forma da Secretaria Estadual do Meio Ambiente resolver a falta de recursos humanos e materiais mínimos para controle do Parque, que antes era administrada pelo Instituto Florestal. Na época, o órgão ambiental considerou a situação “extremamente crítica” nos aspectos de proteção e regularização fundiária.
O processo participativo das ZEEs em São Sebastião
A última atualização do processo de Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) foi promovido pelo Consema (Conselho Estadual do Meio Ambiente) e perdurou de 2010 a 2016. Participaram representantes de prefeituras, governo do estado, ONGs, associações de classe, de pescadores, comunidades tradicionais e universidades. Entre elas, estavam as empresas imobiliárias com o pedido de que as áreas que detém, um total de 6,5 milhões de m², pudessem ser desmatadas e alteradas em até 40%.
Esse pedido não foi atendido e, hoje, a região da Praia do Engenho e Barra do Una são consideradas de “alto grau de preservação ambiental”. “Imagine: discussões técnicas, audiências públicas, reuniões setoriais, oficinas. Foi um processo extremamente democrático”, afirma Maria Fernanda Muniz, advogada e presidente do Instituto Conservação Costeira (ICC). A entidade ambientalista atua como titular de conselhos estaduais, municipais e regionais – e um deles foi o Conselho de Zoneamento Ecológico Econômico do Litoral Norte.
O gerenciamento costeiro considerou critérios técnicos que balizaram que cada zona instituída tivesse suas características respeitadas. “Fizemos trabalho praia por praia, com uma equipe disciplinar formada por biólogos, engenheiros agrônomos”, relata, “é importante frisar que não somos contra o desenvolvimento, mas aquela zona é uma área alagada, um dos poucos remanescentes da Mata Atlântica”. Segundo a advogada, a justificativa dos empreendedores é que outros construíram no passado e eles gostariam de construir agora. E, a isso, ela rebate: “eles podem construir, só que em apenas 20% da área. Não podem construir condomínios e loteamentos naquele padrão Riviera [de São Lourenço]”.
Entenda a diferença das Zonas nas praias do Sul de São Sebastião:
Zoneamento Ecológico-Econômico Setor Costeiro do Litoral Norte
Zoneamento Terrestre
Fonte: Governo do Estado de São Paulo.
Pode ser acessado em: http://cebimar.usp.br/media/cebimar/normas/sao-sebastiao.pdf
São cinco zonas que compõem o zoneamento da cidade: Z1, a mais restritiva, permite ocupação de 10% da área, com atividades voltadas para a cultura extrativista, ecoturismo e pesquisa científica. A Z2 é uma zona intermediária: ainda tem uma vegetação extremamente preservada, mas é factível de ocupação de 20%. São Sebastião não possui Z3, mas a Z4 permite a ocupação de 40% – esta zona já é considerada área urbana, permitindo loteamento de condomínios. Essa classificação é assegurada pelo Plano Diretor da cidade. Logo, o que desejam o grupo de empresas é poder desmatar uma área maior das suas propriedades.
Histórico sujo
A disputa imobiliária da Alemoa permeia o histórico de irregularidades fundiárias da cidade. Em 2012, uma ação penal movida pela 1ª Vara Federal de Caraguatatuba contra a Alemoa S.A. e seus representantes denunciou a ocupação irregular da terra indígena Guarani Ribeirão Silveira, em Barra do Una. A ação aponta que, apesar da denúncia ter sido feita em 2012, a criação de búfalos de forma irregular acontecia há 30 anos.
Nesse sentido, além de prejudicar a fauna e flora local – a terra indígena está nos arredores do Parque Estadual da Serra do Mar – os búfalos também eram uma ameaça à população. A Terra Indígena Ribeirão Silveira possui cerca de 474 indígenas, numa área de 9 mil hectares. Já naquela época, a empresa mostrava o interesse em implementar loteamento na região, pois os búfalos eram utilizados para impedir a regeneração da vegetação da Mata Atlântica.
Porém, o ICC aponta que a Alemoa também utiliza da proteção ambiental a seu favor. O grupo entrou com um pedido de redução de 90% do IPTU referente às terras situadas entre a Praia do Engenho e Barra do Una, no que diz respeito a 2014 e 2015, sob a alegação que o imóvel se encontra em uma área de alta restrição ambiental. No entanto, na lei municipal Nº 1317/1998, seção V, é informado que estão isentos de impostos imóveis particulares cedidos em comodato ao município, estado ou União para fins educacionais, com prazo de validade; a sociedades amigos de bairros; a aposentados e pensionistas que recebam pensões de até 2 salários mínimos; de associações beneficentes, a imóveis de propriedade de ex-combatentes ou viúvas de soldados da FEB (Força Expedicionária Brasileira).
A Alemoa, representada por dois escritórios de advocacia – Antônio Peluso e Edis Milaré – está, atualmente, pedindo uma indenização de R$ 400 mil ao ICC. “Estamos sofrendo um assédio enorme, estão nos atacando como se a gente tivesse alguma coisa pessoal contra eles. Imagina, você mudar um decreto estadual, suspender a assinatura do governador. Abre um precedente para outras áreas no município onde os empreendedores vão querer fazer a mesma coisa”, reflete Fernanda.
Segundo a advogada do ICC, as últimas duas décadas foram extremamente danosas em termos de degradação das águas e da qualidade da água nas praias de São Sebastião. “O crescimento desordenado, a falta de políticas públicas e fiscalização… A gente não tem esgoto”, enumera. De fato, a falta de saneamento básico no município não é um problema recente. Dados do IAS (Instituto Água e Saneamento) apontam que cerca de 24 mil moradores (26%) não têm acesso à água e 41,2% deles não têm esgoto coletado. Para o ICC, se o poder judiciário acatar o pedido de alteração de ZEEs, trará insegurança jurídica e estimulará novas incursões judiciais no mesmo sentido em quaisquer áreas preservadas no país.